A companhia Mau Artista, do Porto, encontra-se em residência artística no Teatro da Rainha. Do Porto para as Caldas da Rainha, mais concretamente para a antiga lavandaria do Centro Hospitalar Oeste Norte, onde prepara o espectáculo Dodô – no rasto do pássaro do sono de Joseph Danan.

Trata-se de um projecto que surge do facto de Fernando Mora Ramos ter sido professor, no âmbito dos espectáculos de final de licenciatura na ESMAE, da maior parte dos integrantes deste projecto, em particular o actor e encenador Paulo Calatré, que também entra como actor na última criação do Teatro da Rainha em coprodução com o TNSJ, Letra M (texto de J. Sazz, pintura e cenografia de João Vieira e encenação de Fernando Mora Ramos). Destas experiências anteriores e num processo que é natural, surgiram cumplicidades que, felizmente, vêm sendo concretizadas em trabalhos de criação. Portanto, Dodô – No rasto do pássaro do sono dá seguimento a esse processo de cumplicidade a caminho de um verdadeiro aprofundamento de uma relação entre criadores.

Tratando-se de um trabalho dedicado ao público infanto-juvenil, a que o Teatro da Rainha dedica uma parte significativa do seu trabalho em 2010/11 e tendo o Mau Artista alguma experiência de contacto com este tipo de públicos, a Direcção Artística do Teatro da Rainha entendeu que um caminho possível, para alargamento das próprias capacidades artísticas e organizativas, mas também para um aprofundamento da relação entre as partes, seria exactamente o de convidar o Mau Artista a realizar em parceria com o Teatro da Rainha, uma Residência Artística.

Dôdo, no rasto do pássaro do sono é um objecto único mais do que singular, uma flor no deserto, já que não há notícia da existência sequer de uma actividade teatral profissional dedicada a infância na Região Oeste. As crianças são desejadas e protegidas, quando são, e depois são tratadas ou numa lógica de ocupação total dos tempos, encarceradas sempre num activismo constante, ou ignoradas justamente naquilo que são, outra idade, outras possibilidades de inventar e aprender, outro mundo, um mundo próprio – claro que felizmente há excepções. Ora No rasto do pássaro do sono, é justamente a abertura de um espaço de encontro entre as crianças, entre crianças e professores e entre crianças e adultos e menos adultos. Há no projecto uma vocação íntegra, ecuménica, por assim dizer, iniciática e universal.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Para além da fábula


Para além da fábula, a peça de Joseph Danan, num registo dramático que estrutura quadros numa montagem hábil recorre além do teatro, ao cinema e às marionetas. Trata-se de uma verdadeira criação interdisciplinar que convoca os públicos infantes a que se destina, entre os 6 e os 12/13, para uma vivência compósita, em tudo distante da passividade que a televisão pede, já que o modo de montagem das cenas que conta a aventura do rapaz protagonista, numa dinâmica inteligente, promove simultaneamente uma viagem ao interior dos próprios mecanismos da ficção. O nosso jovem espectador, podendo identificar-se com o herói da peça, um rapaz que aliás tem um nome que é impronunciável, o que no fundo suscita a identificação, um desejo de nomear, viaja pelos modos diversamente artesanais e tecnológicos desta escrita, numa verdadeira descida – ou subida - aos sortilégios da ficção.

E a aventura não se queda pelo que é exterior, é uma aventura interior, uma viagem também feita para dentro, um momento de apreensão reveladora do mundo que pode ser vista como crescimento intelectual e sensível, como aprofundar da consciência de si e do mundo, como a descoberta da realidade como aquilo que é, natureza e ficção, negócio e liberdade vigiada, luta e conformismo instalado. Assim, em quadros da peça, saltando do puramente lúdico para as experiências da vida real, da publicidade omnipresente para o sonho imprevisto, da realidade com a sua bruteza para o medo do desconhecido, o rapaz faz de facto uma experiência de transformação e crescimento. Trata-se neste sentido de uma aventura intelectual e de uma possibilidade de viver um momento de flagrante emoção na descoberta de si pela libertação do medo. A peça é na realidade uma travessia do medo espicaçada pela curiosidade a caminho de uma desejada autonomia pessoal que só a experiência subjectivada e personalizada pode permitir, como é aqui o caso.

Fernando Mora Ramos

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